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A perseguição de Orestes (Bouguereau 1825-1905) |
Semana passada, a caminho do
trabalho, peguei uma chuva forte. Nunca me preocupo em carregar guarda-chuva
por uma série de razões, mas basicamente porque o tempo que eu passo na rua
é o tempo que eu levo para fazer o trajeto de um ponto de ônibus a outro. Quase
sempre é pouca coisa, então um pouco de água na cabeça não faz mal, pelo
contrário, até refresca. Mas dessa vez foi diferente: tive que dar algumas
voltas a mais, e resultado: peguei uma das piores inflamações de garganta na
minha vida. Na madrugada de sábado, beirando os 40° de febre e sem poder
engolir a própria saliva, lamentei em silêncio: “o que eu fiz pra merecer isso,
meus Deuses”? A pergunta não poderia ter sido mais ridícula.
Ridícula por três razões:
primeiro por pressupor o “merecimento” da doença, como se o universo
funcionasse através do princípio de uma meritocracia cósmica onde tudo o que
acontece conosco, reles mortais, deve ser tido como uma bênção ou uma punição daquilo
que fazemos ou deixamos de fazer. Segundo porque a causa da minha doença de fim de semana era óbvia: a chuva que
peguei, imprudentemente, alguns dias atrás. O que os Deuses teriam a ver com
isso, afinal? E por fim, pergunto-me também se Eles não teriam mais nada de importante
pra fazer do que me enviar uma infecção bacteriana pra curtir no fim de semana.
Contudo, não quero dizer com isso que eu descredito no fato de que eventualmente possamos
comunicarmo-nos com nossos Espíritos por meio de sinais, mensagens ou outras
meios nesse sentido. Pelo contrário: eu gosto de pensar que o Universo é um Todo
costurado e que assim como a cabeça, os olhos e o ouvido, também o braço da
Bruxa sempre alcança o Infinito (como eu disse em outras ocasiões, inclusive aqui). Mas eu prefiro pensar que, pelo menos comigo, essa comunicação sempre
aconteceu em um nível muito mais sutil e sensível do que nesses termos binários
e maniqueístas de castigo/punição. Talvez isso soe Bíblico demais pra mim.
No mais, acredito que essas
ocasiões são momentos especiais. A hora em que nossas raízes tocam o Inferno,
ou que nossos ouvidos escutam os Céus, são momentos raros e únicos – apesar de
eternos. Mas não podemos esquecer que na maior parte do tempo, somos um grão de
areia flutuando em um universo infinito. Somos pó e ao pó voltaremos. Supervalorizar
nosso lugar no Cosmos é não somente recair na pretensão Iluminista ocidental, mas
reforçar a ideia judaico-cristã que nos foi incutida desde crianças de que
alguns de nós somos “escolhidos” em detrimento de outros, que são “danados”. O
que me soa tão ridículo quanto culpar os Deuses por eu estar tomando
amoxicilina agora.
Talvez seria interessante acostumarmo-nos com o fato de que, pelo menos na maior parte do tempo, nossos Deuses não estão preocupados com o que fazemos ou deixamos de fazer.
8 comentários:
Ser um Bruxo pressupõe uma capacidade ímpar de aproximar-se do ateísmo, saudá-lo como saudável, e ainda assim manter-se com a chama no peito entre as sombras.
Por isso a Arte me representa, me adjetiva, me identifica.
Hahaha' Já pensei várias vezes sobre isso cara, e muitas vzs depois de eu mesmo chegar a uma resposta parecida com a sua! Rs Parabéns pelo texto!
Coleciono estes momentos...kkkkk legal...bom ouvir que não sou a única...
Até que enfim! Pensei que havia morrido hahaha
Amei
Cheguei aqui através do texto do Emanuel no Conversas Cartomanticas.
Texto muito claro e muito lúcido. Ando numa fase desse tipo, pensando exatamente estas coisas, o que me fez pensar até que eu não acreditava mais na Divindade.
Mas talvez seja apenas isso: Deus não está ocupado das nossas pequenas mazelas.
Obrigada por compartilhar conosco esse tema!
Se eu ficar debaixo de um sol de 40 graus durante um dia inteiro sem proteção, terei sérias queimaduras. Perguntarei aos céus:"Hélios, o que fiz para merecer isto"? Se eu mergulhar no mar bravio e me afogar, perguntarei ao mar: "Por que me derrubaste, Poseidon"?
Uma das coisas que mais aprecio no paganismo é a noção de que "somos responsáveis pelos nossos atos". Não no sentido ação/julgamento/recompensa/punição do cristianismo, que prevê um deus o tempo todo preocupado com o que fazemos ou deixamos de fazer. Mas no sentido de lei natural/causa/efeito, em que a presença dos Deuses só é relevante no sentido de que foram Eles que criaram as leis.
Amei a matéria! Importante reflexão sobre o ego, também.
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